Códigos e etiquetas
sociais, civilidade, hipocrisia. A mentira social dá certo equilíbrio às
estruturas de convívio. Sem isso, todos viveríamos no limite da insanidade?
Ninguém suportaria a verdade, ou faltou apenas ‒ apenas! ‒ aculturarmo-nos a
ela?
A sala: duas réstias
de luz, de cá, de lá, tal qual as correntes presas aos pés e mãos de Revertido.
Elas se cruzavam à sua frente, num encontro gratuito. Os olhos verdes, agora
avermelhados dele, fixavam-se sobre o ponto de encontro.
Fome. Sede. Dores.
Exaustão.
E aquela luz
brilhando até chegar a noite e apagá-la, anunciando o sono.
Sono.
Há dois dias, esse
prisioneiro não tinha um nome conhecido. Disse se chamar Revertido.
– Isso é nome? Em que
língua?
– E daí? Se não tem
documento, o nome dele é va-ga-bun-do!
– Ortiz, você não
está mais na polícia.
– Rê, rê, rê! Aqui
sou mais que polícia! Polícia não vem a este lugar. Sou tudo, aqui. Sou deus!
– Ele vai morrer, não
come... Então é matar ele logo – pêi! Um teco e pronto.
– Quem é que dá as
ordens aqui, hem, Zecão?
– Arre!, é tu, Ortiz.
– Então, eu decido,
se teco, não teco, quando teco.
Esse par de seres que
dialogava tinha outros em volta deles, dentro de uma casa de alvenaria muito
boa e com luxos, apetrechos estranhos de se imaginar em um lugar tão longe da
civilização. Era preciso viajar de avião ou de barco. De barco, a viagem durava
muitos dias, para só então, apeando à margem, pegar outro transporte e fazer
longo trajeto por uma estrada não-oficial, a certa altura, e tomar uma vicinal
que ia dar nesse povoado, ou cidadela daquele deus pagão, de justiça própria e
Estado ausente.
O povo vivente ali,
não era muito, mas Ortiz gostava de responder por eles. Nas eleições, fazia
todo mundo votar. Uma vez por ano, embarcava todas as mulheres e levava para
uma capital qualquer. A cada ano ele as reunia e dava uma festa, mandando que
escolhessem no mapa para qual capital do país queriam ir. Elas tinham a chance
de fazer o exame preventivo anual e ainda passeavam pra conhecer os shoppings das capitais. Voltavam tão
animadas e cheias de histórias, que Ortiz não tinha problema em convencer
nenhuma a fazer as viagens longas, cansativas e constrangedoras em seu objetivo
principal.
Havia uma pequena
escola, e ele fez um candidato mandar professores para lá. Os professores não
queriam ficar, mas Ortiz ia promovendo-os com tantas vantagens e agrados, que
assim conseguia manter alguns, o mesmo fazendo com um clínico geral, o único.
Nunca conseguiu outros, esse vivia bêbado, dava trabalho, mas quebrava muitos
galhos, salvava muitas vidas. No mais, a cidade não era cidade. Nada funcionava
como deveria. E agora os rapazes, seus “soldados”, haviam encontrado aquele
Revertido na mata, vestido normalmente (isso não quer dizer à moda ou estilo
qualquer, apenas vestido). Quem ou o quê era ele?
Revertido não comia,
mas ao arrebol* ele clamava que o estavam matando de fome. A
refeição lhe era servida, mas o prato voltava intocado. Ortiz foi falar com
ele.
– Não posso soltar
você, não sei quem você é. Aqui somos nós por nós mesmos, e se você for um
criminoso, e eu lhe soltar... Se depois eu lhe pegar fazendo asneira, lhe dou
um teco. Então eu precisava que você me desse algum tipo de alternativa pra não
ter de matar você. Nós aqui não temos costume de manter prisioneiro. É caro e
despropositado. Até as crianças sabem que os seres humanos não mudam.
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